sábado, 30 de novembro de 2019

O Cariri emudece

O Ceará perdeu, hoje, um dos mais importantes radialistas da sua história. Ele era membro do nosso Insituto Cultural do Cariri, ocupando a Cadeira Nº 27 ( Seção Artes & Ofícios que tem como patrono José de Oliveira Lima).  Heron Aquino somava incontáveis qualidades num só profissional. Voz bonita e poderosa; locutor versátil que ia desde o noticiário até as transmissões esportivas exuberantes ( nesta modalidade foi certamente um dos mais completos do Rádio Cearense) ; animador de festas e cerimonialista de solenidades; produtor de programas; redator perfeccionista que escrevia com extrema correção; diretor de programação e de emissoras. Sua voz foi a mais inconfundível do Rádio caririense nos últimos trinta anos. Juntava-se a tudo isso uma figura humana generosa, tranquila, sem arroubos desnecessários, uma fábrica de amigos e de admiradores, um pai de família exemplar. Os atropelos da idade fizeram com que se afastasse da profissão prematuramente. Hoje, partiu e é como se todos os rádios, de repente, tivessem silenciado. Sua presença, no entanto, permanecerá indelével. De alguma maneira o Cariri falava na sua voz e, com ela silenciada, perderá um pouco a força e o brilho. Grande Heron !

Republicamos aqui uma crônica de J. Flávio Vieira publicada quando da  aposentadoria dele do Rádio  em 10 de Outubro de 2014.



FAROL


                                               Eram os gloriosos Anos 60, aqui em Crato. Vivíamos a época de ouro do futebol na nossa cidade. Campos se multiplicavam pelos subúrbios. Toda uma geração de garotos  se imantava na conquista das Copas do Mundo de 1958 e 1962. Times de Futebol Association como o “Sport”, o “Satélite”, o “Rebelde” e craques como Anduiá, Charuto, Chico Curto, Antonio, Edmilson e Luiz Pé de Pato, Fruta-Pão , Netinho, Pinto, Enoque levavam a torcida a superlotar o precário Campo do Sport. Paralelamente, os nossos times de Futebol de Salão ganharam renome em todo estado pela combatividade e efetividade do seu jogo. Ainda menino, encantava-me com as disputas gloriosas e acirradas entre o Votoran, o Volkswagen, a AABB e o Crato Tênis Clube e com as jogadas de craques como Gledson, Reginaldo, Dote, Luciano, Pernambuco, Zé Vicente, Paulo Cézar, Gilton. Desses times, periodicamente, se convocava a aguerrida Seleção Cratense de Futebol.
                                   Com tantos embates empedernidos e fabulosos, surgiu a necessidade imperiosa do seu registro midiático e foi justamente neste período que floresceu o jornalismo esportivo da região, em Crato polarizado entre as duas Rádios : a pioneira Araripe e a jovem e recém-inaugurada Educadora. Foi neste cenário e com alguns célebres personagens que aconteceu, nessa época, o mais monumental acontecimento da história radiofônica caririense.
                                   A Seleção Cratense de Futebol de Salão , multivitoriosa, viajou para um embate duríssimo com a Seleção de Iguatu que jogava em casa. A transmissão naqueles tempos áureos era dificílima. Iguatu encontrava-se numa zona silenciosa de radiodifusão e só existiam duas maneiras de executar a tarefa. Conectar a rede diretamente no fio do telégrafo ou na linha do trem, captando, depois, por fios, diretamente aqui, os sons possíveis e múltiplos que viessem. A qualidade era péssima, cheia de ruídos e sons adventícios, principalmente quando se utilizava a modalidade linha do trem. E mais, sem possibilidade de comunicação direta com a Rádio local, nunca se sabia se a transmissão estava sendo possível. Era  sempre um tiro no escuro. Pois bem, a Rádio Educadora adiantou-se e, em ofício, solicitou a linha aos “Correios e Telégrafos”. A Araripe ficou no olha-e-veja, tarde despertou para o fato de ter sido sobrepassada pela concorrência . Restava-lhe, tão somente, optar pelo péssimo recurso da linha do trem e a incerteza da possibilidade de retransmissão ou a certeza de perder a audiência para a Educadora por conta da baixa qualidade sonora. Um jovem locutor esportivo, então, teve uma ideia inusitada. Ouvir no estúdio da Araripe em Crato, a transmissão da concorrente e , através dela, fazer a própria veiculação da partida, como se lá estivessem. O comentarista esportivo, mais tarimbado, temeu pela dificuldade quase intransponível do feito, mas, sem opção, acedeu. A equipe cedo se trancou no estúdio da Araripe, para que todos pensassem que haviam viajado para Iguatu e, de lá, sorrateiramente, ouvindo a emissão defeituosa e cheia de ruídos da Educadora, retransmitiram, como se lá estivessem, todo o jogo. Até mesmo o segundo gol do time do Crato , gritaram antes . Como foi possível ? O jovem locutor, atento, em meio a propaganda da Araripe, percebeu quando a torcida do Crato berrou : Gol de Gledson ! E, antes da adversária, sapecou : -- Gollll da Seleção Cratense ! Gledson ! O comentarista, anos depois, contava que o mais terrível era ter que comentar os lances sem ver e, mais, no intervalo do jogo, ver-se na imperiosa necessidade de fazer considerações minuciosas por mais de quinze minutos sobre a partida. Nem é preciso dizer que todo Cariri optou pela transmissão da Rádio Araripe, limpíssima e sem quaisquer barulhos estranhos. Quando a Educadora descobriu o blefe , estabeleceu-se uma celeuma danada, protestos e mais protestos, editoriais no noticiário. Nem sequer perceberam que haviam presenciado a mais extraordinária façanha do Rádio caririense em todos os tempos, protagonizada por um jovem locutor esportivo, ainda pouco conhecido, chamado Heron Aquino e um comentarista já mais taludo e que se tornaria, depois, um dos nomes mais queridos do jornalismo cearense : Elói Teles.
                                   Pois bem, amigos, rápido, cinquenta anos se foram desfolhando, como por encanto, na Folinha da parede. O nosso querido comentarista já hoje flutua nas ondas celestiais. Neste  dez de setembro, o Dia da Imprensa , o Cariri emudece um pouco mais, quando seu companheiro,  o jovem locutor de outrora, resolveu dependurar o microfone.
          Neste interlúdio de meio século, Heron Aquino se tornou o mais completo nome do Rádio Caririense. Locutor, Narrador Esportivo, Noticiarista, Disk-Jóquei, Cerimonialista, Assessor de Imprensa, Produtor, Publicitário, Diretor de Emissoras de Rádio, Redator e Repórter, desempenhou as mais variadas e díspares funções com galhardia, competência e simplicidade. Trabalhou ainda em Fortaleza,  na Ceará Rádio Clube e na TV Ceará e poderia ter tido uma fulgurante e próspera carreira nas terras alencarinas se  a saudade do pé-da-serra não tivesse vencido aos doces prazeres da beira-mar.  Aqui retornou e fez sua voz brilhante e característica se transformar na voz oficial da nossa cidade. Ético,  nunca fez da sua atividade um balcão de tramoias e negociatas, não precisou por qualidades em quem não tem, nem pespegar virtudes em salafrários. Equilibrado sempre propagou a notícia como um mote para que o ouvinte , do outro lado, desenvolvesse sua própria glosa.
            Sem Heron, o Rádio perde uma voz importante e isenta e um técnico de uma completude  quase que insubstituível.     Ele     seguiu, intuitivamente,  os preceitos de Pulitzer do bom jornalismo : foi sempre breve para que fosse ouvido; claro para que lhe apreciassem; original para que nunca o esquecessem e , acima de tudo, preciso para que , como um farol, muitos viessem a ser guiados por sua luz. 

Crato, 10/10/14
                                    


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