segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O Capuchinho que fundou o Crato . Por Armando Lopes Rafael (*)

 

  




A poetisa Adélia Prado escreveu que a memória se contrapõe ao tempo, pois o tempo leva os fatos a serem esquecidos, e a memória os traz de volta, eternizando os momentos...

   Na memória coletiva de Crato persiste uma lacuna: a de realçar, com mais destaque, o protagonismo de Frei Carlos Maria de Ferrara, um humilde Filho de São Francisco, que aqui viveu. A memória, oral ou escrita, é a fonte primária da História, uma ciência cem por cento humana, porquanto feita unicamente pela ação do homem.  Ademais, já dizia o Prof. João Marcelo Sena: “A História não é um filme que passou. É uma película que pode constantemente ser editada e reinterpretada”. Coincidindo com um pensamento da historiadora portuguesa Ana Isabel Baescu quando afirmou: A história, enfim, é um eterno fluir, e como compreender o presente sem o passado?”

   Fascinante a vida desse Carlos. Nascido, segundo as fontes, em 1706 “numa família abastada, em Ferrara”, cidade situada na região da Emília-Romanha, Norte da Itália. Naquela urbe, localizada próxima à margem sul do Rio Pó – o maior rio italiano – o menino Carlos nasceu e viveu sua infância e adolescência. Lá, rezou na Catedral de São Jorge; frequentou a igreja de San Cristoforo Alla Certosa; visitou outros vetustos templos de Ferrara, uma cidade quase totalmente cercada por 9 quilômetros de antigas paredes de tijolos, construídas entre 1492 e 1520. Bela Ferrara! Pontilhada de edifícios históricos, como o Castelo Estense, o Palazzo dei Diamanti, alguns soberbos espaços públicos como é o caso do Parco Massari.

     

    Ocorre-me lembrar aqui, uma decisão tomada por um pensador católico brasileiro, Plínio Corrêa de Oliveira (1908-1995), quando optou, ainda adolescente, por deixar as glórias do mundo e seguir o chamado vocacional. Plínio resumiu sua decisão nesta frase: Quando ainda muito jovem, considerei enlevadas as ruínas da Cristandade. A elas entreguei meu coração. Voltei as costas ao meu futuro e fiz daquele passado carregado de bençãos o meu porvir!”. O mesmo ocorreu, dois séculos antes da decisão de Plínio, com Carlos de Ferrara.  

 

A vocação

   Foi em Ferrara, no primeiro quartel do século XVIII, que Carlos tomou a decisão mais séria de sua vida: seguir sua vocação religiosa, dizendo sim ao chamado de Deus. Ele optou pelo carisma Capuchinho, um ramo da primeira ordem de São Francisco de Assis. Aceitou, plenamente, o modus vivendi dessa ordem religiosa que determinava àquela época: “Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios! Recebestes de graça, dai também de graça”.  E passou a viver na pobreza, conservar a  castidade, seguir à risca o que lhe era imposto por seus superiores,  naquilo que seus confrades  chamavam a “santa obediência”.  Para vestir, Carlos recebeu um rústico hábito marrom, com um pequeno capuz à cabeça, em italiano: capuccino (capuz pequeno). Para calçar, um par de rústicas e desconfortáveis sandálias de couro. A partir daí o jovem Carlos não teve mais vaidades, a começar pela aparência do rosto, pois lhe foi imposto o uso de barba longa, obrigatória  entre os frades capuchinhos. Em 21 de agosto de 1723, aos 17 anos,  Carlos vestiu o hábito religioso. Depois disso, ainda viveu na Europa por cerca de treze anos.

 

Brasil: palco da atuação desse frade

 

   Um dia seus superiores resolveram enviá-lo para o distante e desconhecido Brasil, à época uma colônia de Portugal. Segundo pesquisas do Pe. Antônio Gomes de Araújo (baseadas nos Arquivos da Propaganda Fidei, América Meridionalis, volume II, folha 425) o Bispo de Módena, na Itália, examinou – em agosto de 1736 – o Frei Carlos Maria de Ferrara, destinado à Missão de Pernambuco, no Brasil. E achou-o instruído e capaz para a missão. E o jovem frade atravessou o Mar Mediterrâneo; depois, cruzou o Oceano Atlântico, numa viagem de quase três meses, até avistar o litoral pernambucano, a “Terra dos Altos Coqueiros, de belezas soberbo estendal”... O mesmo Pe. Gomes escreveu – citando os arquivos capuchinhos – que Frei Carlos Maria de Ferrara chegou ao Recife em 15 de agosto de 1736.

 

    Frei Carlos permaneceu pouco tempo na aprazível capital pernambucana. Logo, seus superiores o destinaram a aldear tribos indígenas no sopé da Chapada do Araripe, distante mais de 600 kms de Recife, numa época que não existiam estradas, meios de transportes ou comunicação entre o litoral e o inóspito interior nordestino. E o frade se lançou a pé, atravessando as léguas tiranas da zona da Mata, do Agreste e do Sertão, levando quase dois meses, até chegar à Chapada do Araripe.

 

O fundador da Missão do Miranda

 

   Os antigos chamavam essa Chapada de “Serra do Araripe”. No entanto, as serras são acidentes geográficos com partes altas, seguidas de saliências. Já as chapadas são relevos com topos planos formados em rochas sedimentares. A Chapada do Araripe é uma imensa formação arenítica servindo de divisa entre os Estados do Ceará, Pernambuco e Piauí. Segundo antiga tradição oral, essa imponente Chapada teria sido batizada de “Araripe”, pelos indígenas habitantes do seu entorno. “Araripe” na língua indígena significaria poeticamente: “lugar onde nasce o dia”.

    Arrimados em pesquisas do Pe. Antônio Gomes de Araújo, sabe-se que:  “Aos 18 de dezembro de 1737, o Superior Missionário, Reverendíssimo Padre Frei Carlos Maria de Ferrara começou a zelar no ensino aos índios e a unir as nações indígenas”. Inicialmente, a missão funcionou no local onde hoje é o bairro Mirandão, na cidade de Crato. Por exiguidade de água, naquele recanto, transferiram a missão para novo espaço,  onde hoje é a Praça da Sé – o chão mais sagrado de Crato – que ficava próximo ao perene Rio Granjeiro. Naquele lugar, Frei Carlos ergueu – em 1740 – uma capela de taipa, coberta de palha. No entanto, já em 1742, construiu – em substituição a antiga, rústica e pobre capelinha –  uma nova capela de pedra e cal dedicada  à Santíssima Trindade, à Nossa Senhora da Penha e a São Fidelis de Sigmaringa.

 

   Sabe-se que Frei Carlos deve ter chegado ao paradisíaco Vale do Cariri, por volta de 1737. Padre Antônio Gomes de Araújo deixou escrito: “A notícia mais antiga, até agora revelada, referente à missão do Miranda, sua igrejinha e Frei Carlos, traz a data de 30 de julho de 1741”. Está num livro de batizados e casamentos da Paróqia da Vila do Icó, a cuja jurisdição esteve subordinado o Cariri até 1748. Segundo o mesmo Pe. Antônio Gomes de Araújo, estavam aldeados na Missão do Miranda de Frei Carlos membros das tribos Cariris, Cariús, Quixeriús, Curianês, Calabassas e Icozinhos, como consta na página 304,  do livro “Informação Geral da Capitania de Pernambuco em 1749”, volume, publicado no Rio de Janeiro em 1908. Por aí se vê como era ampla a autoridade e poder pessoal de Frei Carlos Maria de Ferrara a governar tantos índios, instruindo-os na Boa Nova de Cristo.

 

     O frade só deixaria o Vale do Cariri em 1750, para ocupar o cargo de Prefeito dos Capuchinhos de Pernambuco, em Recife. Lá permaneceu até 1753. Naquele ano foi  transferido para o Rio de Janeiro, a  Capital da Colônia,   para exercer as funções de Prefeito dos Capuchinhos naquela importante cidade, a partir de 1754. O Rio de Janeiro  seria a última localidade a receber os frutos do ideal de  Frei Carlos. Por onde ele passou – Itália, Recife, Missão do Miranda (hoje cidade de Crato) e no Rio de Janeiro –  o humilde frade capuchinho foi tido como uma pessoa que irradiava santidade. A santidade é plasmada na simplicidade dos pequenos gestos, que embutem os sinais da prática da caridade. A santidade nem sempre é construída com  grandes gestos. Quase sempre é adquirida com pequenas  atitudes do cotidiano. Nestas, prevalecem o amor  e a sinceridade.

      No Rio de Janeiro, Frei Carlos faleceu em 1774, com a idade de 68 anos. Nas anotações dos arquivo dos Capuchinhos pode-se ler, ainda hoje,  a anotação que transcrevo abaixo:

 

“Religioso doce, prudente, virtuoso e nosso Prefeito por vinte anos, vindo de Pernambuco onde também era prefeito. A sua doença foi muito prolongada, porque alguns anos antes da morte teve um esturpor que o privou do movimento das mãos e braços: pouco a pouco, com o favor de Deus e assistência de um bom médico, Romano Sciala, começou a cobrar o perdido, de sorte que já dizia Missa. Mas como os achaques fazem trégua e não paz,  finalmente acabou a vida, tendo-se disposto muito bem para a última passagem. Seu enterro foi assistido por várias pessoas nobres desta cidade, com demonstrações de grande sentimento”

 

  

 (*) Palavras proferidas no evento promovido, em 19-08-2022, pelo Instituto Cultural do Cariri em homenagem a Frei Carlos Maria de Ferrara.

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